26 agosto 2010

Aula 3 - Relato de experiência/emoção forte

O narrador
Assim como o autor de uma apresentação pessoal ou de um relato sobre o próprio cotidiano precisa ver-se de fora para que seja capaz de compor um quadro completo de si mesmo para o leitor, do mesmo modo o autor de relato de uma emoção forte ou de um aprendizado resultante de um acontecimento que experienciou precisa constituir-se em narrador da história que conta.
Para determinar, portanto, o que é um narrador, comecemos por aí: o narrador não é o autor, e, assim como postulamos uma unidade temática, isto é, uma redução do assunto todo a um único tema capaz de organizar um relato, precisamos também postular uma redução do autor a uma unidade narradora capaz de mostrar-se para o leitor como o mais adequado personagem para apresentar a mais interessante versão da história que conta, seja por tê-la vivido, seja por tê-la presenciado, seja ainda por ter coletado os melhores dados a respeito dela. [...]
Dar um depoimento pessoal implica, em primeiro lugar, necessariamente, uma reavaliação pessoal das ideias correntes a respeito da situação social em que a história se localiza, das instituições nela envolvidas. [...]
Para fazer tal reavaliação pessoal é necessário, de saída, superar as dificuldades pessoais de aprofundar o significado existencial da história. Essa superação só pode ser empreendida pelo exercício da objetividade, o exercício de desprender-se de si para ver-se como um personagem, como uma pessoa igual às outras e entre as outras ou, em outras palavras, constituir um narrador ou transformar o autor em narrador. [...]
O depoimento pessoal envolve uma particularização dos sentimentos experimentados e do valor atribuído às relações humanas vividas pelos personagens.
Na verdade, essa objetividade tem como pré-requisitos dois tipos de avaliação a serem feitos por quem se dispõe a contar uma história, avaliações que – é muito provável – se dão concomitantemente. O autor precisa decidir por que motivo contar esta história pode ser útil tanto para quem conta quanto para quem está convocado a ouvi-la, por que vale a pena estabelecer exatamente este novo diálogo, a que novo tipo de desejável relação ele vai levar. Essa relação que a história vai estabelecer com o leitor impõe também ao autor uma avaliação para decidir se o leitor que tem pela frente é o interlocutor que ele quer para compartilhar uma tão complicada questão. Em outras palavras, precisamos ter certeza do motivo pelo qual queremos contar exatamente esta história exatamente para estas pessoas.
Daí por diante, o autor tem de se dispor a enfrentar as dificuldades narrativas que tal história impõe. A primeira delas é a disposição de acatar o tamanho que o texto vai precisar para conter exatamente a história tal como ela precisa ser contada, isto é, para que ela se apresente como uma história inteligível, inteligente, interessante e original. A segunda, como já tratamos – complemento não contraditório desta – é enfrentar a necessária seleção do que é relevante para compor a história, seleção que começa pela renúncia a contar tudo e segue pela decisão de contar tudo o que for realmente mais importante, que é geralmente o mais complicado, o mais doloroso e o mais difícil de ser contado. Depois vai ser necessário avaliar em que a ficção, ou a livre interpretação dos fatos de se substituir, para o bem da inteligibilidade e do interesse da história, aquilo que parece ser o fato real.
As qualidades da narração
a) Objetividade: para criar o narrador que vai contar sua história em terceira pessoa ou para constituir-se no narrador que vai contá-la em primeira pessoa é indispensável que o autor desenvolva a capacidade de ver-se de fora, de selecionar um aspecto de seu jeito de ser para tornar-se inteligível para o leitor. Lembre-se que o leitor só se interessa por histórias que pode avaliar não apenas pelo que nela acontece mas também pelo fato de tal coisa ter acontecido com tal pessoa e não com outra; é necessário, portanto, que o texto apresente seu narrador por meio de dados concretos para que o leitor possa avaliá-los por si mesmo sem ser posto na constrangedora circunstância de ter de acreditar na palavra do autor.
b) Unidade temática: começa a se constituir na disposição de contar uma história, e uma história envolve um enredo, um conflito, fatos, personagens, narrador. Essa disposição tem de ser levada às últimas consequências: o autor só tem o direito de dizer algo como a emoção foi indescritível depois de ter feito uma minuciosa descrição dela, pois que, a rigor, qualquer coisa pode ser mais minuciosamente descrita do que já foi. Não se pode também ficar apenas no enredo: quem conta que numa cidade vivam duas famílias inimigas, e um dia um rapaz de uma das famílias apaixonou-se por uma moça da outra, e ela também apaixonou-se por ele, mas as famílias fizeram tanta oposição que os dois acabaram mortos, quem conta isso não está contando Romeu e Julieta; está contando o enredo sobre o qual Romeu e Julieta e tantas outras histórias se baseiam. Resumindo:
-                            dê ao leitor todas as informações necessárias a respeito do enredo, do cenário, do narrador e dos demais personagens, da época em que a ação se situa, para que ele possa acompanhar o relato;
-                            mostre-lhe o valor que o narrador atribui aos fatos que conta;
-                            apresente-lhe dados concretos para que ele possa não só avaliar a adequação dos julgamentos que o narrador faz a respeito dos fatos que narra, mas também fazer a sua própria avaliação da história, em confronto com sua própria existência.

c) Concretude: As pessoas são péssimos personagens, e os seres humanos, péssimos assuntos, pelo singelo motivo de que são criaturas sem existência concreta: são abstrações. No entanto, é exatamente sobre eles que nós contamos histórias, pelo singelo motivo de que é neles que nós nos encontramos. Eles são o único lugar onde nós podemos nos comunicar e trocar experiências. E é justamente para podermos trocar experiências que não podemos falar deles; temos de falar de nós, pessoas concretas que compartilham com as demais pessoas e com os demais seres humanos concretos dessa natureza geral onde nos encontramos. Só podemos trocar experiências se elas contiverem, ao lado dessas semelhanças fundamentais, diferenças bem claras que mostrem nossas individualidades, permitindo o trânsito de nosso aprendizado entre essa natureza geral e nosso particular caminho.
Use as palavras que mais claramente expressem as relações que o narrador e os personagens mantêm com as idéias, instituições e atitudes. Chame as coisas pelo nome que elas têm no seu dialeto, mas não se envergonhe das palavras que lhe parecerem eruditas: escrever é apropriar-se da linguagem escrita para pô-la a serviço do esclarecimento que se quer produzir. O uso que se faz da linguagem, o trabalho que realiza com ela e sobre ela – o que também leva o nome de estilo – é uma preciosa informação também a respeito do narrador.
d) Questionamento: é a própria essência da narração: se não for para contar um problema, nem vale a pena abrir a boca, ou juntar palavras num papel. O que vem ao caso é saber como se desenrola o processo, como uma questão se equaciona, como se desenvolve um conjunto de relações entre concretas pessoas que se empenham para fazer valer seus interesses em contraposição a interesses opostos ou em aliança com interesses convergente.
[...] relatar fracassos é geralmente mais instrutivo do que relatar vitórias, tanto para quem lê, quanto especialmente para quem tenta entender, ao organizar seu relato, as causas desse fracasso.


GUEDES, Paulo Coimbra. Da redação escolar ao texto: um manual de redação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

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